terça-feira, outubro 31, 2006
Gene - Revelations

Acho que o excesso de qualidades nas pessoas serve apenas para ser lamentado. Senão, vejamos: caso apaixone-se perdidamente por alguém repleto de predicados, quando este alguém não quiser mais ficar contigo, suas idéias sempre flutuarão em torno de pensamentos como "mas puxa, ele era tão bonito, inteligente, simpático, doce... por que não quis ficar comigo?". Em outra mão, temos a situação oposta: a pessoa "perfeita" se aproxima de você, mas sabe-se lá por qual motivo, você não cai de amores por ela e acaba dizendo "tchau, até mais, a gente se vê". Aposto que suas lamentações vão mudar de lado: "puxa, ela era tão bonita, simpática, doce, inteligente... Por que eu não me apaixonei por ela?".

Exatamente por isso, entendi cada linha da complexa fábula da vida quando vi os dois juntos. Não era à toa que tudo tinha dado errado para eles durante tanto tempo. Não foi por acaso que ambos, cada um em seu caminho, haviam quebrado a cara tantas e tantas vezes. Naquele momento, tudo pareceu nítido: eles precisavam se encontrar, só isso. Cedo ou tarde, longe ou perto. Juntos, eles eram um amontoado de defeitos que fazia sentido. Era como se não precisassem de qualidades a serem lamentadas depois, porque não existiria o depois. Então eles viviam intensamente aqueles defeitos todos, aquelas falhas, aqueles erros evidentes. Dois rabiscos tremidos dançando levemente sobre uma folha branca, suja.

No chão do quarto, no meio da bagunça caótica daquela vida que pulava regras como se fossem as barreiras de uma pista, o encarte de um disco estava cuidadosamente abandonado sobre algumas roupas amassadas. Era Revelations, o penúltimo álbum dos ingleses do Gene. O disco que rodava em loop no cd player também. E nada poderia ser tão apropriado - a trilha sonora pode ser perfeita, ainda que as pessoas não precisem ser. A banda surgiu em 1993 na Inglaterra, ao mesmo tempo que o intangível Oasis, e acabou sendo lançada ao segundo plano do rock inglês exatamente por esta coincidência cronológica. O segundo plano, na época, era como um porão escondido sob uma mansão escura, fria e mal-assombrada. Além disso, a banda sofreu também com uma comparação injusta: a de que seria uma cópia fajuta dos Smiths. Tá certo, vá lá, Martin Rossiter tem um timbre vocal que lembra bastante Steven Patrick Morrissey, mas a semelhança pára por aí. O Gene foi, desde o primeiro disco (Olympian, 1995), uma banda de rock com muita personalidade.

Revelations, de 1999, é o álbum que melhor demonstra a distância entre o Gene e os fantasmas dos Smiths. A abertura do disco, com As Good As It Gets, já mostra que os meninos estão bem menos doces do que na obra-prima anterior, o extremamente romântico e belo Drawn to the Deep End (1997). Eles estão mais errados, digamos. Mais crassos. Mais humanos. Muito mais próximos desse romance de verdade, em que as partes não têm muitas qualidades. Talvez por este motivo, pareçam também mais abertos para viver a vida. O assunto central, no entanto, continua sendo os relacionamentos humanos e essas coisas todas que cercam boa parte de nossas vidas. Só que agora a proposta é outra: "give me what I need and I´ll love you for an hour". Simples como isso. Quase cruel. Nada de romances que padeçam por excesso de glicose.

Eles continuavam ali, juntos, sobrevoando todo o caos do quarto, ouvindo incessantemente aquele disco e aquelas músicas que diziam tudo o que eles não precisavam falar. Imploravam para que toda as qualidades permanecessem do lado de fora, afinal, não precisavam delas para seguir adiante. O Gene desistiu de manter a perfeição de suas trilhas e a banda acabou em 2004, após alguns show que foram preciosamente registrados para a posteridade. Já o romance imperfeito seguiu, ad aeternum.

cotação: *****
para saborear As Good As It Gets e The Looker, clique aqui.

escrito por Nat || 31.10.06 ||

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